"O amor, quando se revela, não se sabe revelar. Sabe bem olhar pra ela, mas não lhe sabe falar."
Fernando Pessoa

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Licitações - Maria Sylvia Zanella Di Pietro

Capítulo 9 - Licitação
9.1 CONCEITO
Aproveitando, parcialmente, conceito de José Roberto Dromi (1972:92), pode-se definir a licitação como o procedimento administrativo pelo qual um ente público, no exercício da função administrativa, abre a todos os interessados, que se sujeitem às condições fixadas no instrumento convocatório, a possibilidade de formularem propostas dentre as quais selecionará e aceitará a mais conveniente para a celebração de contrato.
Ao falar-se em procedimento administrativo está-se fazendo referência a uma série de atos preparatórios do ato final objetivado pela Administração. A licitação é um procedimento integrado por atos e fatos da Administração e atos e fatos do licitante, todos contribuindo para formar a vontade contratual. Por parte da Administração, o edital ou convite, o recebimento das propostas, a habilitação, a classificação, a adjudicação, além de outros atos intermediários ou posteriores, como o julgamento de recursos interpostos pelos interessados, a revogação, a anulação, os projetos, as publicações, anúncios, atas etc. Por parte do particular, a retirada do edital, a proposta, a desistência, a prestação de garantia, a apresentação de recursos, as impugnações.
A expressão ente público no exercício da função administrativa justifica-se pelo fato de que mesmo as entidades privadas que estejam no exercício de função pública, ainda que tenham personalidade jurídica de direito privado, submetem-se à licitação. Note-se que as entidades da administração indireta, com personalidade de direito privado, como empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações, costumam ser chamadas por alguns autores de entidades públicas de direito privado, por terem o regime de direito comum parcialmente derrogado por normas de direito público; é o caso dos dispositivos constitucionais que impõem licitação (arts. 22, XXVII, e 37, caput, na redação da Emenda Constitucional nº. 19/98, combinado com inciso XXI).
Pela licitação, a Administração abre a todos os interessados que se sujeitem às condições fixadas no instrumento convocatório, a possibilidade de apresentação de proposta. Quando a Administração convida os interessados pela forma de convocação prevista na lei (edital ou carta-convite), nesse ato convocatório vêm contidas as condições básicas para participar da licitação, bem como as normas a serem observadas no contrato que se tem em vista celebrar; o atendimento à convocação implica a aceitação dessas condições por parte dos interessados. Daí a afirmação segundo a qual o edital é a lei da licitação e, em conseqüência, a lei do contrato. Nem a administração pode alterar as condições, nem o particular pode apresentar propostas ou documentação em desacordo com o exigido no ato de convocação, sob pena de desclassificação ou inabilitação, respectivamente.
Finalmente, a expressão possibilidade de formularem propostas dentre as quais selecionará a mais conveniente para a celebração de contrato encerra o conceito de licitação. No direito privado, em que vigora o princípio da autonomia da vontade, o contrato celebra-se mediante a apresentação de uma oferta que o outro aceita. No direito administrativo, a licitação equivale a uma oferta dirigida a toda a coletividade de pessoas que preencham os requisitos legais e regulamentares constantes do edital; dentre estas, algumas apresentarão suas propostas, que equivalerão a uma aceitação da oferta de condições por parte da Administração; a esta cabe escolher a que seja mais conveniente para resguardar o interesse público, dentro dos requisitos fixados no ato convocatório.

9.3 PRINCÍPIOS
Uma primeira observação é no sentido de que a própria licitação constitui um princípio a que se vincula a Administração Pública. Ela é uma decorrência do princípio da indisponibilidade do interesse público e que se constitui em uma restrição à liberdade administrativa na escolha do contratante; a Administração terá que escolher aquele cuja proposta melhor atenda ao interesse público. O princípio da indisponibilidade do interesse público também exige que as empresas estatais, embora regidas pelo direito privado, se submetam à licitação, uma vez que administram recursos total ou parcialmente públicos. Isto significa que, com a nova redação do dispositivo constitucional, as empresas estatais vão poder dispor de procedimento próprio para suas licitações. Mas não estarão dispensadas de observar os princípios da licitação.
9.3.1 Princípio da igualdade
O princípio da igualdade constitui um dos alicerces da licitação, na medida em que esta visa, não apenas permitir à Administração a escolha da melhor proposta, como também assegurar igualdade de direitos a todos os interessados em contratar. Esse princípio, que hoje está expresso no artigo 37, XXI, da Constituição, veda o estabelecimento de condições que impliquem preferência em favor de determinados licitantes em detrimento dos demais.
No § 1º., inciso I, do mesmo artigo 3º., está implícito outro princípio da licitação, que é o da competitividade decorrente do princípio da isonomia: é vedado aos agentes públicos “admitir, prever, incluir ou tolerar, nos atos de convocação, cláusulas ou condições que comprometam, restrinjam ou frustrem o seu caráter competitivo e estabeleçam preferências ou distinções em razão da naturalidade, da sede ou domicílio dos licitantes ou de qualquer outra circunstância impertinente ou irrelevante para o específico objeto do contrato”.
No mesmo § 1º., inciso II, do artigo 3º., da Lei nº. 8.666, há ainda outra aplicação do princípio da isonomia, quando se veda aos agentes públicos “estabelecer tratamento diferenciado de natureza comercial, legal, trabalhista, previdenciária ou qualquer outra, entre empresas brasileiras, inclusive no que se refere a moeda, modalidade e local de pagamento, mesmo quando envolvidos financiamentos de agências internacionais, ressalvado o disposto no parágrafo seguinte e no artigo 3º. da Lei nº. 8.248, de 23-10-91”.
A primeira exceção, prevista no § 2º. do artigo 3ó, é a que assegura, em igualdade de condições, como critério de desempate, preferência, sucessivamente, aos bens e serviços: “I - produzidos ou prestados por empresas brasileiras de capital nacional; II - produzidos no País; III - produzidos ou prestados por empresas brasileiras”.
A segunda exceção refere-se às aquisições de bens e serviços de informática e automação, para dar preferência aos produzidos por empresas de capital nacional, observada a seguinte ordem: “I - bens e serviços com tecnologia desenvolvida no país; II - bens e serviços produzidos no País, com significativo valor agregado local”.
Essas duas exceções não conflitam com o princípio da isonomia, uma vez que o artigo 5º. da Constituição somente assegura igualdade entre brasileiros e estrangeiros em matéria de direitos fundamentais.
A preocupação com a isonomia e a competitividade ainda se revelam em outros dispositivos da Lei nº. 8.666; no artigo 30, § 5º., é vedada, para fins de habilitação, a exigência de comprovação de atividade ou de aptidão com limitações de tempo ou de época ou ainda em locais específicos, ou quaisquer outras não previstas nesta lei, que inibam a participação na licitação; no artigo 42, referente às concorrências de âmbito internacional, em que se procura estabelecer igualdade entre brasileiros e estrangeiros: pelo § 1º., “quando for permitido ao licitante estrangeiro cotar preço em moeda estrangeira, igualmente o poderá fazer o licitante brasileiro”; pelo § 3º. do artigo 42, “as garantias pagamento ao licitante brasileiro serão equivalentes àquelas oferecidas ao licitante estrangeiro”; pelo § 4º., “para fins de julgamento da licitação, as propostas apresentadas por licitantes estrangeiros serão acrescidas dos gravames conseqüentes dos mesmos tributos que oneram exclusivamente os licitantes brasileiros quanto à operação final de venda”; e, pelo § 6º., “as cotações de todos os licitantes serão para entrega no mesmo local de destino”; o artigo 90 define como crime o ato de frustrar ou fraudar o caráter competitivo do procedimento licitatório, com o intuito de obter, para si ou para outrem, vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação.
Embora tenha que haver competição, ela não é inteiramente livre, pois a proteção do interesse público exige a imposição de certas normas que afastam, por exemplo, as pessoas jurídicas não regularmente constituídas, as que não apresentem idoneidade técnica ou financeira; além disso, a competição é menos livre em determinadas hipóteses de licitação, como a tomada de preços e o convite, em que a participação fica restringida, no primeiro caso, aos previamente inscritos no registro cadastral e, no segundo, aos convocados pela Administração de acordo com sua própria escolha.


9.3.2 Princípio da legalidade
O princípio da legalidade, já analisado no item 3.3.1 em relação à Administração Pública em geral, é de suma relevância, em matéria de licitação, pois esta constitui um procedimento inteiramente vinculado à lei; todas as suas fases estão rigorosamente disciplinadas na Lei nº. 8.666, cujo artigo 4º. estabelece que todos quantos participem de licitação promovida pelos órgãos ou entidades a que se refere o artigo 1º. têm direito público subjetivo à fiel observância do pertinente procedimento estabelecido na lei. Tratando-se de direito público subjetivo, o licitante que se sinta lesado pela inobservância da norma pode impugnar judicialmente o procedimento. Além disso, mais do que direito público subjetivo, a observância da legalidade foi erigida em interesse difuso, passível de ser protegido por iniciativa do próprio cidadão. É que a Lei nº. 8.666 previu várias formas de participação popular no controle da legalidade do procedimento (arts. 4º., 41, § 1º.,101 e 113, § 1º.), ampliou as formas de controle interno e externo e definiu como crime vários tipos de atividades e comportamentos que anteriormente constituíam, em regra, apenas infração administrativa (arts. 89 a 99) ou estavam absorvidos no conceito de determinados tipos de crimes contra a Administração (Código Penal e Lei nº. 8.429, de 2-6-92, que define os atos de improbidade administrativa).

9.3.3 Princípio da impessoalidade
O princípio da impessoalidade, já analisado no item 3.3.3, aparece, na licitação, intimamente ligado aos princípios da isonomia e do julgamento objetivo: todos os licitantes devem ser tratados igualmente, em termos de direitos e obrigações, devendo a Administração, em suas decisões, pautar-se por critérios objetivos, sem levar em consideração as condições pessoais do licitante ou as vantagens por ele oferecidas, salvo as expressamente previstas na lei ou no instrumento convocatório.

9.3.4 Princípio da moralidade e da probidade
O princípio da moralidade, conforme visto no item 3.3.11, exige da Administração comportamento não apenas lícito, mas também consoante com a moral, os bons costumes, as regras de boa administração, os princípios de justiça e de eqüidade, a idéia comum de honestidade. Além de previsto nos artigos 37, caput, e 5º., LXXIII, da Constituição, o Decreto-lei nº. 2.300 o incluía no artigo 3º. com o nome de princípio da probidade, que nada mais é do que honestidade no modo de proceder.
A Lei nº. 8.666 faz referência à moralidade e à probidade, provavelmente porque a primeira, embora prevista na Constituição, ainda constitui um conceito vago, indeterminado, que abrange uma esfera de comportamentos ainda não absorvidos pelo Direito, enquanto a probidade ou, melhor dizendo, a improbidade administrativa já tem contornos bem mais definidos no direito positivo, tendo em vista que a Constituição estabelece sanções para punir os servidores que nela incidem (art. 37, § 4º.). O crime de improbidade administrativa está definido na Lei nº. 8.429, de 2-6-92; no que se refere à licitação, não há dúvida de que, sem usar a expressão improbidade administrativa, a Lei nº. 8.666, nos artigos 89 a 99, está punindo, em vários dispositivos, esse tipo de infração.

9.3.5 Princípio da publicidade
Outro princípio previsto no artigo 3º. da Lei nº. 8.666, é o da publicidade (v. item 3.3.10), que diz respeito não apenas à divulgação do procedimento para conhecimento de todos os interessados, como também aos atos da Administração praticados nas várias fases do procedimento, que podem e devem ser abertas aos interessados, para assegurar a todos a possibilidade de fiscalizar sua legalidade. A publicidade é tanto maior quanto maior for a competição propiciada pela modalidade de licitação; ela é a mais ampla possível na concorrência, em que o interesse maior da Administração é o de atrair maior número de licitantes, e se reduz ao mínimo no convite, em que o valor do contrato dispensa maior divulgação.

9.3.6 Princípio da vinculação ao instrumento convocatório
Trata-se de princípio essencial cuja inobservância enseja nulidade do procedimento. Além de mencionado no artigo 3º. da Lei nº. 8.666, ainda tem seu sentido explicitado no artigo 41, segundo o qual “a Administração não pode descumprir as normas e condições do edital, ao qual se acha estritamente vinculada”. E o artigo 43, inciso V ainda exige que o julgamento e classificação das propostas se façam de acordo com os critérios de avaliação constantes do edital. O princípio dirige-se tanto à Administração, como se verifica pelos artigos citados, como aos licitantes, pois estes não podem deixar de atender aos requisitos do instrumento convocatório (edital ou carta-convite); se deixarem de apresentar a documentação exigida, serão considerados inabilitados e receberão de volta, fechado, o envelope-proposta (art. 43, inciso II); se deixarem de atender às exigências concernentes à proposta, serão desclassificados (art. 48, inciso I). Quando a Administração estabelece, no edital ou na carta-convite, as condições para participar da licitação e as cláusulas essenciais do futuro contrato, os interessados apresentarão suas propostas com base nesses elementos, ora, se for aceita proposta ou celebrado contrato com desrespeito às condições previamente estabelecidas, burlados estarão os princípios da licitação, em especial o da igualdade entre os licitantes, pois aquele que se prendeu aos termos do edital poderá ser prejudicado pela melhor proposta apresentada por outro licitante que os desrespeitou. Também estariam descumpridos os princípios da publicidade, da livre competição e do julgamento objetivo com base em critérios fixados no edital.

9.3.7 Princípio do julgamento objetivo
Quanto ao julgamento objetivo, que é decorrência também do princípio da legalidade, está assente seu significado: o julgamento das propostas há de ser feito de acordo com os critérios fixados no edital. E também está consagrado, de modo expresso, no artigo 45, em cujos termos “o julgamento das propostas será objetivo, devendo a Comissão de licitação ou responsável pelo convite realizá-lo em conformidade com os tipos de licitação, os critérios previamente estabelecidos no ato convocatório e de acordo com os fatores exclusivamente nele referidos, de maneira a possibilitar sua aferição pelos licitantes e pelos órgãos de controle”. Para fins de julgamento objetivo, o mesmo dispositivo estabelece os tipos de licitação: de menor preço, de melhor técnica, de técnica e preço e o de maior lance ou oferta (v. item 9.7.1.3).
A respeito desse assunto, existe acórdão proferido pelo Tribunal Federal de Recursos, em mandado de segurança impetrado contra o INAMPS (Mandado de Segurança nº. 104.932, in RDA 161/226), por licitante que foi preterido no julgamento, não obstante tivesse apresentado a proposta de menor preço. A justificativa da autoridade impetrada foi no sentido de que não se tratava, no caso, de licitação de menor preço, mas sim da mais vantajosa; e adjudicou ao licitante que apresentara o quinto maior preço. Houve, no caso, invocação, pelo Tribunal, de quatro princípios que devem estar presentes em todo contrato administrativo: legalidade, moralidade, finalidade e publicidade. Em tendeu que se for preterida a proposta de menor preço, a Administração deve fundamentar a sua escolha, sob pena de nulidade do ato por falta de motivação. No caso em tela, o edital não indicara critérios objetivos que possibilitassem a apreciação de outros fatores no julgamento das propostas, conforme artigo 130, IV do Decreto-lei nº. 200/67. Apenas repetiu a norma do caput do artigo 133 que prevê que na fixação de critérios para julgamento das licitações levar-se-ão em conta, no interesse do serviço público, as condições de qualidade, rendimento, preços etc.
Na ausência de critérios, tem-se que presumir que a licitação é a de menor preço. Sendo assim, a preterição da proposta de menor preço tem que ser justificada. Além de conceder a segurança, o Tribunal ainda determinou encaminhamento de peças dos autos ao Ministério Público, para as providências cabíveis, tendo em vista ofensa ao artigo 335 do Código Penal (impedimento, perturbação ou fraude de concorrência).

9.3.8 Princípio da adjudicação compulsória
Com relação ao princípio da adjudicação compulsória, significa, segundo Hely Lopes Meirelles (1989:244), que a Administração não pode, concluído o procedimento, atribuir o objeto da licitação a outrem que não o vencedor. “A adjudicação ao vencedor é obrigatória, salvo se este desistir expressamente do contrato ou o não firmar no prazo prefixado, a menos que comprove justo motivo. A compulsoriedade veda também que se abra nova licitação enquanto válida a adjudicação anterior”. Adverte ele, no entanto, que “o direito do vencedor limita-se à adjudicação, ou seja, à atribuição a ele do objeto da licitação, e não ao contrato imediato. E assim é porque a Administração pode, licitamente, revogar ou anular o procedimento ou, ainda, adiar o contrato, quando ocorram motivos para essas condutas. O que não se lhe permite é contratar com outrem, enquanto válida a adjudicação, nem revogar o procedimento ou protelar indefinidamente a adjudicação ou a assinatura do contrato sem justa causa”.
Em verdade, a expressão “adjudicação compulsória” é equívoca, porque pode dar a idéia de que, uma vez concluído o julgamento, a Administração está obrigada a adjudicar; isto não ocorre, porque a revogação motivada pode ocorrer em qualquer fase da licitação. Tem-se que entender o princípio no sentido de que, se a Administração levar o procedimento a seu termo, a adjudicação só pode ser feita ao vencedor; não há um direito subjetivo à adjudicação quando a Administração opta pela revogação do procedimento.

9.3.9 Princípio da ampla defesa
Finalmente, cabe ainda uma palavra a respeito de um princípio pouco mencionado em matéria de licitação; trata-se do princípio da ampla defesa, já reconhecido, em alguns casos concretos, pela jurisprudência. Cite-se acórdão do Supremo Tribunal Federal, publicado na RTJ 105/162, em que, embora sem julgamento do mérito porque o problema da defesa envolvia matéria de fato, inapreciável em mandado de segurança, ficou implícito o reconhecimento do direito de defesa na licitação, como procedimento administrativo que é. A matéria foi também examinada pelo Tribunal Federal de Recursos, em hipótese em que houve desclassificação de empresa licitante, por falta de idoneidade técnica, sem assegurar o direito de defesa (RDA 166/ 117). Na vigência da nova Constituição o artigo 5º., inciso LV torna indiscutível a exigência de observância desse princípio, com os meios e recursos a ele inerentes, e também do princípio do contraditório, em qualquer tipo de processo administrativo em que haja litígio. O artigo 87 da Lei nº. 8.666 exige a observância da ampla defesa para aplicação das sanções administrativas.



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