"O amor, quando se revela, não se sabe revelar. Sabe bem olhar pra ela, mas não lhe sabe falar."
Fernando Pessoa

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Noção de Contratos e princípios - Carlos Roberto Gonçalves

CAPÍTULO I

NOÇÃO GERAL DE CONTRATO

1. CONCEITO

Contrato é fonte de obrigação. Fonte é o fato que dá origem a esta, de acordo com as regras de direito. Os fatos humanos que o Código Civil brasileiro considera geradores de obrigação são:


a) os contratos;

b) as declarações unilaterais da vontade;

c) os atos ilícitos, dolosos e culposos.


Como é a lei que dá eficácia a esses fatos, transformando-os em fontes diretas ou imediatas, aquela constitui fonte mediata ou primária das obrigações. É a lei que disciplina os efeitos dos contratos, que obriga o declarante a pagar a recompensa prometida e que impõe ao autor do ato ilícito o dever de ressarcir o prejuízo causado. Há obrigações que, entretanto, resultam diretamente da lei, como a de prestar alimentos (CC, ár-t. 396), a de indenizar os danos causados por seus empregados (CC, art. 1.521, 111), a propter rem imposta aos vizinhos etc. O Código Civil disciplina dezesseis espécies de contratos nominados e duas de declarações unilaterais da vontade: o título ao portador e a promessa de recompensa (CC; arts. 1.505 a 1.517). Contém ainda um capítulo referente às obrigações por atos ilícitos (CC, arts. 1.518 a 1.553). Começaremos o estudo pelo contrato, que é comumente conceituado, desde Beviláqua, como o acordo de vontades que tem por fim criar, modificar ou extinguir direitos. Constitui o mais expressivo modelo de negócio jurídico bilateral.


2. CONDIÇÕES DE VALIDADE


Os requisitos ou condições de validade dos contratos são de duas espécies: a) de ordem geral, comuns a todos os atos e negócios jurídicos, como a capacidade do agente, o objeto lícito e a forma prescrita ou não defesa em lei (CC, art. 82); b) de ordem especial, específicos dos contratos: o consentimento recíproco ou acordo de vontades.

A capacidade dos contratantes é, pois, o primeiro requisito (condição subjetiva) de ordem geral para a validade dos contratos. Estes serão nulos (art. 145, 1) ou anuláveis (art. 147, 1) se a incapacidade, absoluta ou relativa, não for suprida pela representação ou pela assistência (CC, art. 84).

O objeto do contrato há de ser lícito, isto é, não atentar contra a lei, a moral ou os bons costumes (condição objetiva). Quando é imoral, os tribunais por vezes aplicam o prin cípio de direito de que ninguém pode valer-se da própria torpeza (nemo auditur propriam turpitudinem allegans). Tal princípio é acolhido pelo legislador nos arts. 97, que trata do dolo ou torpeza bilateral, e 971 do Código Civil, que proíbe a repetição do pagamento feito para obter fim ilícito, imoral ou proibido por lei. Além de lícito, o objeto do contrato deve ser, também, possível. Com efeito, o art. 145, 11, do Código Civil declara nulo o negócio jurídico quando for ilícito, ou impossível, o seu objeto. A impossibilidade da prestação pode ser física ou jurídica. A primeira é a que emana de leis físicas ou naturais. Deve ser absoluta, isto é, atingir a todos, indistintamente (p. ex., a de colocar a água dos oceanos em um copo d'água). A relativa, que atinge o devedor mas não outras pessoas, não constitui obstáculo ao negócio jurídico (CC, art. 1.091). Impossibilidade jurídica do objeto ocorre quando o ordenamento proíbe negócios a respeito de determinado bem, como a herança de pessoa viva (CC, art. 1.089), as coisas fora do comércio etc. A ilicitude do objeto é mais ampla, pois abrange os contrários à moral e aos bons costumes. O objeto do contrato, por fim, deve ter algum valor econômico. Um grão de areia, por exemplo, não interessa ao mundo jurídico, por não suscetível de apreciação econômica. Deve ser, também, "determinado ou determinável" (CC, projeto aprovado no Senado em 26-11- 1997, art. 104, II).

O terceiro requisito de validade do negócio jurídico é a forma (forma dat esse rei, ou seja, a forma dá ser às coisas). Deve ser a prescrita ou não defesa em lei. Em regra, a forma é livre. As partes podem celebrar o contrato por escrito, público ou particular, ou verbalmente, a não ser nos casos em que a lei, para dar maior segurança e seriedade ao negócio, exija a forma escrita, pública ou particular (CC, art. 129). Em alguns casos a lei reclama também a publicidade, mediante o sistema de Registros Públicos (CC, art. 135).

O requisito de ordem especial, próprio dos contratos, é o consentimento recíproco ou acordo de vontades. Deve ser livre e espontâneo, sob pena de ter a sua validade afetada pelos vícios ou defeitos do negócio jurídico: erro, dolo, coação, simulação, fraude e lesão. A manifestação da vontade, nos contratos, pode ser tácita, quando a lei não exigir que seja expressa (CC, art. 1.079). Expressa é a exteriorizada verbalmente, por escrito, gesto ou mímica, de forma inequívoca. Algumas vezes a lei exige o consentimento escrito como requisito de validade da avença. É o que ocorre na atual Lei do Inquilinato (Lei n. 8.245/91), cujo art. 13 prescreve que a sublocação e o empréstimo do prédio locado dependem de consentimento, por escrito, do locador. Não havendo na lei tal exigência, vale a manifestação tácita, que se infere da conduta do agente. Nas doações puras, por exemplo, muitas vezes o donatário não declara que aceita o objeto doado, mas o seu comportamento (uso, posse, guarda) demonstra a aceitação. O silêncio pode ser interpretado como manifestação tácita da vontade somente quando a lei der a ele tal efeito, como nos arts. 1.166 (doação pura), 1.293 (mandato), 1.147 (venda a contento) etc., ou quando este ficar convencionado em um précontrato ou ainda resultar de uma praxe comercial (CC, art. 1.084). Nestes casos o silêncio é considerado circunstanciado ou qualificado.

Como o contrato, por definição, é um acordo de vontades, não se admite a existência de autocontrato ou contrato consigo mesmo. O que há, na realidade, são situações que se assemelham a contrato dessa natureza, como ocorre no cumprimento de mandato em causa própria, previsto no art. 1.317, 1, do Código Civil, em que o mandatário recebe poderes para alienar determinado bem, por determinado preço, a terceiros ou a si próprio. Na última hipótese, aparece apenas uma pessoa ao ato da lavratura da escritura, mas só aparentemente, porque o mandatário está ali também representando o mandante. Este, quando da outorga da procuração, já fez uma declaração de vontade. Preceitua a Súmula 60 do Superior Tribunal de Justiça: "É nula a obrigação cambial assumida por procurador do mutuário vinculado ao mutuante, no exclusivo interesse deste". A razão é que tal situação configura modalidade de contrato consigo mesmo.


4. PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DO DIREITO CONTRATUAL


Os mais importantes princípios do direito contratual são:


a) Princípio da autonomia da vontade - Significa ampla liberdade de contratar. Têm as partes a faculdade de celebrar ou não contratos, sem qualquer interferência do Estado. Podem celebrar contratos nominados ou fazer combinações, dando origem a contratos inominados. Tal princípio teve o seu apogeu após a Revolução Francesa, com a predominância do individualismo e a pregação de liberdade em todos os campos, inclusive no contratual. Como a vontade manifestada deve ser respeitada, a avença faz lei entre as partes, assegurando a qualquer delas o direito de exigir o seu cumprimento.


b) Princípio da supremacia da ordem pública - Limita o da autonomia da vontade, dando prevalência ao interesse público. Resultou da constatação, feita no início deste sécu lo e em face da crescente industrialização, de que a ampla liberdade de contratar provocava desequilíbrios e a exploração do economicamente mais fraco. Em alguns setores fazia-se mister a intervenção do Estado,-para restabelecer e assegurar a igualdade dos contratantes. Surgiram os movimentos em prol dos direitos sociais e a defesa destes nas encíclicas papais. Começaram, então, a ser editadas leis a fim de garantir, em setores de vital importância, a supremacia da ordem pública, da moral e dos bons costumes, podendo ser lembradas, entre nós, as diversas leis do inquilinato, a Lei da Usura, a Lei da Economia Popular, o Código de Defesa do Consumidor e outras. A intervenção do Estado na vida contratual é, hoje, tão intensa em determinados campos (telecomunicações, consórcios, seguros, sistema financeiro etc.) que se configura um verdadeiro dirigismo contratual.


c) Princípio do consensualismo - Decorre da moderna concepção de que o contrato resulta do consenso, do acordo de vontades, independentemente da entrega da coisa. A compra e venda, por exemplo, quando pura, torna-se perfeita e obrigatória, desde que as partes acordarem no objeto e no preço (CC, art. 1.126). O contrato já estará perfeito e acabado desde o momento em que o vendedor aceitar o preço oferecido pela coisa, independentemente da entrega desta. O pagamento e a entrega do objeto constituem outra fase, a do cumprimento das obrigações assumidas pelos contraentes (CC, art. 1.122). Os contratos são, em regra, consensuais. Alguns poucos, no entanto, são reais (do latim res: coisa), porque somente se aperfeiçoam com a entrega do objeto, subseqüente ao acordo de vontades. Este, por si, não basta. O contrato de depósito, por exemplo, só se aperfeiçoa depois do consenso e da entrega do bem ao depositário. Enquadram-se nessa classificação, também, dentre outros, os contratos de comodato e mútuo.


d) Princípio da relatividade dos contratos - Funda-se na idéia de que os efeitos do contrato só se produzem em relação às partes, àqueles que manifestaram a sua vontade, não afetando terceiros. O nosso ordenamento o acolheu no art. 928 do Código Civil, que assim dispõe: "A obrigação, não sendo personalíssima, opera assim entre as partes, como entre seus herdeiros". Embora tenham sido
mencionados somente os herdeiros, não são terceiros, em face dos contraentes, também os seus sucessores a título singular. Só a obrigação personalíssima não vincula os sucessores. O aludido princípio comporta, entretanto, algumas exceções expressamente consignadas na lei, permitindo estipulações em favor de terceiros, reguladas nos arts. 1.098 a 1.100 (comum nos seguros de vida e nas separações judiciais consensuais) e convenções coletivas de trabalho, por exemplo, em que os acordos feitos pelos sindicatos beneficiam toda uma categoria.


e) Princípio da obrigatoriedade dos contratos - Representa a força vinculante das convenções. Pelo princípio da autonomia da vontade, ninguém é obrigado a contratar. Os que o fizerem, porém, sendo o contrato válido e eficaz, devem cumpri-lo. Tem por fundamentos: a) a necessidade de segurança nos negócios (função social dos contratos), que deixaria de existir se os contratantes pudessem não cumprir a palavra empenhada, gerando a balbúrdia e o caos; b) a intangibilidade ou imutabilidade do contrato, decorrente da convicção de que o acordo de vontades faz lei entre as partes (pacta sunt servanda), não podendo ser alterado nem pelo juiz. Qualquer modificação ou revogação terá de ser, também, bilateral. O seu inadimplemento confere à parte lesada o direito de fazer uso dos instrumentos judiciários para obrigar a outra a cumpri-lo, ou a indenizar pelas perdas e danos, sob pena de execução patrimonial (CC, art. 1.056). A única limitação a esse princípio, dentro da concepção clássica, é a escusa por caso fortuito ou força maior, consignada no art. 1.058 e parágrafo único do Código Civil.


f) Princípio da revisão dos contratos (ou da onerosidade excessiva) - Opõe-se ao da obrigatoriedade, pois permite aos contratantes recorrerem ao Judiciário, para obterem alte ração da convenção e condições mais humanas, em determinadas situações. Originou-se na Idade Média, mediante a constatação, atribuída a Neratius, de que fatores externos podem gerar, quando da execução da avença, uma situação muito diversa da que existia no momento da celebração, onerando excessivamente o devedor. A teoria recebeu o nome de rebus sic stantibus, e consiste basicamente em presumir, nos contratos comutativos, de trato sucessivo e de execução diferida, a existência implícita (não expressa) de uma cláusula, pela qual a obrigatoriedade de seu cumprimento pressupõe a inalterabilidade da situação de fato. Se esta, no entanto, modificar-se em razão de acontecimentos extraordinários (uma guerra, p. ex.), que tornem excessivamente oneroso para o devedor o seu adimplemento, poderá este requerer ao juiz que o isente da obrigação, parcial ou totalmente. Depois de permanecer longo tempo no esquecimento, a referida teoria foi lembrada durante a I Guerra Mundial de 1914 a 1918, que provocou um desequilíbrio nos contratos de longo prazo. Alguns países regulamentaram a revisão dos contratos em leis próprias. Na França, editou-se a Lei Faillot, de 21 de janeiro de 1918. Na Inglaterra, recebeu a denominação de Frustration of Adventure. Outros a acolheram em 10 seus Códigos, fazendo as devidas adaptações às condições atuais. Entre nós, foi adaptada e difundida por Arnoldo Medeiros da Fonseca, com o nome de teoria da imprevisão, em sua obra Caso fortuito e teoria da imprevisão. Em razão da forte resistência oposta à teoria revisionista, o referido autor incluiu o requisito da imprevisibilidade, para possibilitar a sua adoção. Assim, não era mais suficiente a ocorrência de um fato extraordinário, para justificar a alteração contratual. Passou a ser exigido que fosse também imprevisível. É por essa razão que os tribunais não aceitam a inflação como causa para a revisão dos contratos. Tal fenômeno é considerado previsível entre nós.
O nosso Código não regulamentou expressamente a revisão contratual. Não resta dúvida, porém, de que o princípio de que a revisão pode ser postulada em razão de modifi cações da situação de fato foi acolhido. Com efeito, o art. 401 do Código Civil permite o ajuizamento de ação revisional de alimentos, se sobrevier mudança na fortuna de quem os supre. Podem ser ainda lembrados, como exemplos, os arts. 954 e 1.058 do mesmo diploma.


Na realidade, a cláusula rebus sic stantibus e a teoria da imprevisão têm sido aplicadas entre nós somente em casos excepcionais e com cautela, desde que demonstrados os seguintes requisitos:

a) vigência de um contrato comutativo de execução diferida ou de trato sucessivo;

b)ocorrência de fato extraordinário e imprevisível;

c) considerável alteração da situação de fato existente no momento da execução, em confronto com a que existia por ocasião da celebração;

d) onerosidade excessiva para um dos contratantes e vantagem exagerada para o outro. Em linha geral, não se aplicam aos contratos aleatórios porque envolvem um risco, salvo se o imprevisível decorrer de fatores estranhos ao risco próprio do contrato.


g) Princípio da boa-fé - Exige que as partes se comportem de forma correta não só durante as tratativas, como também durante a formação e o cumprimento do contrato. Guarda relação com o princípio de direito sobre o qual ninguém pode beneficiar-se da própria torpeza. Recomenda ao juiz que presuma a boa-fé, devendo a má-fé, ao contrário, ser provada por quem a alega.

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